segunda-feira, novembro 28, 2005

Shhh!

Shhh, ela disse.
E ele, com os olhos arregalados, ficou bem caladinho, pra que ninguém os encontrasse.
Não tinham, juntos, mais que vinte anos. Estavam ali, embaixo da mesa, escondendo-se dos adultos, à procura de um pouco de privacidade.
Ele estremeceu todo quando sentiu a mão dela tocar a sua. Soltou um reprimido grunhido de felicidade, ao que ela retribuiu, mais um vez, Shhh!
Assustado, tentou se concentrar exclusivamente em não fazer barulho e entregar a escondida privacidade para os adultos dali. Perguntou a ela num sussuro o que fariam depois, se conseguissem, claro estava, sair debaixo da mesa sem serem percebidos. Como se encontrariam novamente, se se encontrariam alguma vez mais.
Ela olhou fundo nos olhos dele, ainda reprimindo-o pelo quase inaudível barulho que fazia ao falar, e disse:
- Saindo daqui, vai cada um pra sua casa e pronto.
Num reflexo, tirou a mão debaixo da dela e bateu a cabeça na tábua da mesa, irritando-a ainda mais. Seu coração parecia saltar-lhe à boca, quando encostou-a à orelha dela. Ouviu a respiração dela ficando mais pesada, à espera de uma palavra doce, ou um beijo, e falou bem claramente, antes de sair:
- Até nunca mais, então.

quarta-feira, novembro 16, 2005

De sorvetes e jardins

Era uma praia relativamente pequena, povoada apenas durante os verões e fins-de-semana, pelos mais ricos indivíduos da região.
Nela trabalhavam, coincidentemente, um sorveteiro e um jardineiro, que não se conheciam, mas moravam perto um do outro, do lado da cidade oposto à praia.
Tinham - não por escolha, é bem verdade - as melhores profissões do mundo, apesar de não consentirem com isso. Se a maior satisfação do jardineiro era poder ver uma flor se abrir, na mesma proporção se satisfazia o sorveteiro ao cativar um sorriso infantil. E há quem diga que a satisfação de ambos devia-se ao prazer de estarem fazendo um bom trabalho (e de, portanto, terem uma boa recompensa no fim do mês), mas sempre preferimos pensar pelo lado mais poético e altruísta da vida.
Justamente durante o verão (e, em parte, a primavera), os dois trabalhadores se enchiam de estímulo e alegria ao acordarem um pouco antes do sol nascer.
Senhor sorveteiro saía de casa com o carrinho cheio de sorvetes, de todos o sabores. E sabia exatamente a hora em que a maré estaria ideal para o seu passeio pela orla. Depois do almoço, preferia andar pelas ruas, empurrando o objeto de desejo de todas aquelas crianças dos arredores. Podia ouvi-las gritando de dentro das casas pros pais e familiares ao simples toque do sino, que avisava sua aproximação.
Deleitava-se a cada sorvete vendido... Admirava a felicidade plena e inocente que um simples sorvete (provido por ele) podia atiçar num moleque brejeiro.
Senhor jardineiro não tinha popularidade com crianças. O contato dele era mesmo com as donas-de-casa, muito menos inocentes que os moleques, mas igualmente brejeiras, há que se dizer. Não prestava muita atenção em sorrisos e gritos emocionados, mas tinha sensibilidade suficiente para perceber cada mudança em cada flor dos jardins de que cuidava. Deleitava-se a cada novo odor que aflorasse... Admirava o balé das flores ao vento da praia.
Lá vinha Sorveteiro, numa tarde qualquer, já não com todos os sabores, porque muitos sorrisos já tinha visto, dobrando a esquina com seu pesado carrinho. Se depara com o jardim do jardineiro... e lá em frente gasta uns longos 30 minutos, percebendo cada movimento das flores, sentindo cada perfume de terra.
Vem Jardineiro, sem ouvir o sino tocar, e, pela primeira vez, cumprimenta aquele velho homem. Pede um sorvete ao sorveteiro, que, sem muito pensar, entrega na mão do jardineiro, adentrando seu jardim.
Em retribuição, Jardineiro arranca, aqui com algum pesar, a rosa mais bonita do jardim, pousando-a no carrinho do sorveteiro.
Não foram mais que aquelas as palavras que trocaram, senão as de cumprimento e despedida. Eram gente humilde, de bom coração, que se contentava com as pequenas coisas da vida.
Quando Sorveteiro se foi, deixou na memória de Jardineiro um satisfeito sorriso (um pouco desdentado, devido à avançada idade), por ter visto flores tão belas a alegrar-lhe o fim de uma tarde de verão.

sábado, novembro 12, 2005

O papel

Começou a escrever sem saber o quê. Pelo simples fato de ter batido nela a vontade...
Riscava palavras aleatórias, aparentemente desconexas.
Tentava, com caneta e lápis à mão, ao melancólico som das músicas que ouvia, expulsar o vazio que dentro de si sentia.
Aquele vácuo era um nó na garganta, uma vontade incessante de gritar, de correr, de chorar.
E as lágrimas jorravam ao ritmo das palavras, molhando as desconexas melancolias que escrevia.
O papel começava a rasgar de tanto choro e palavra, de tanta melancolia e pensamento... O nó a apertava a garganta a cada mudança de tom.

Parou.
Releu o que escrevera e, surpresa, encontrou o sentido que procurava. Enxugou o rosto e foi abraçar o mundo, que ficava bem ali em frente.
Antes, amassou o papel e jogou no lixeiro da cozinha. Pensou que ninguém precisava saber de tudo aquilo, tão escancaradamente.